29/04/2007

O negro

Em tudo o que faço, há um pouco de raiva... um pouco de revolta quando ouço ou falo com alguém, mas há, sobretudo, muita incompreensão e isso é o que custa mais, porque sem razões ou meras desculpas tudo é mais difícil de suportar... cá dentro, bem no fundo, onde tudo se acumula camada sobre camada até à exaustão e enjoo... até ao sabor a podre, até ao travo amargo do fel, travo que é o sofrimento – umas vezes ocasional outras mais relutante e permanente consoante o dia... consoante a disposição. Má disposição! Arroto com sabor a vómito! Pessimismo desmedido que repousa no negro de uma alma que repousa no negro de um caixão que repousa no negro de um buraco escuro, muito escuro e negro.
Lá fora há sol, sol quente de primavera, que relembra às pessoas o verão, as mesmas pessoas que, por isso, se sentam nos degraus sobranceiros de qualquer local suficientemente bom para se estar... só estar. Mas cá dentro, dentro deste quarto que sou eu, as luzes estão apagadas, as cortinas cerradas, as persianas descidas, a janela e a porta estão fechadas e trancadas. Sentado, recostado, quase deitado, no sofá seco e poeirento, rodeado do calor bafio e húmido da minha própria presença, sem nenhuma aragem de qualquer fresta que compartilhe ar, olho para nada. Na parede reflecte-se um bocado do sol, só sol, sem ar, que trespassa o vidro através dos quatro, ás vezes cinco, buracos da persiana e eu semicerro os olhos até à visão nublada, até à alienação do espaço e do tempo e penso em ti, ninguém em especial, ninguém em concreto, apenas alguém que me pergunta hoje como estou e a quem eu respondo mostrando isto, o negro.

João Freire

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