29/04/2007

Poema em linha recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómodo às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas finaceiras, pedindo emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nuca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me contasse que uma vez foi vil?
Ó príncipes,meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amada,
Podem ter sido traídos - mas rídiculos nunca!
E eu, que tenho sido redículo sem ter sido trído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Para o tema de Junho de 2011, subordinado ao tema "Os problemas resolvem-se à chapada" , num desafio da "Fábrica de Letras".

7 comentários:

guida burt disse...

Na minha modestíssima opinião foi este o melhor post do mês, cujo tema não me agradou ... mas esta sua porrada valeu a pena, e muito. Foi com luva de pelica ... Felicito-o por isso e pela boa lembrança.

Roselia Bezerra disse...

Olá,
Se a gente olha pra dentro do coração vai encontrar tanta "chapada"... como mostrou Pessoa... porém temos virtudes que nos podem levantar a auto estima sempre...
Muito bom!!!
Abraços fraternos de paz

Johnny disse...

gb, por acaso, quando vi aqueles primeiros comentários de reacção ao tema no início do mês, pensei logo que poderia participar com este tema (daí ter esperado) num dos seus blogues, pois é comum ver lá poesia (nomeadamente de Pessoa) mas como se mostrou intransigente na participação... cheguei-me à frente :)

orvalho do ceu... grande verdade! Até eu estou todo dorido de ver essas "chapadas" interiores :)

Briseis disse...

Grande ideia! Adoro este poema de Álvaro de Campos e encaixa tão bem em todos nós... É aquela baixeza inconfessável que todos sentimos e nunca admitimos. Boa. Muito boa!

Johnny disse...

Briseis, como costumam dizer, é engraçado porque é verdade e encaixa mesmo na maior parte das pessoas.

mz disse...

Muito bom.
Adoro Fernando Pessoa e o Heterónimo Álvaro de Campos.

Também estou "farta" dos que se acham semideuses. São os maiores, até caírem de maduros.

Johnny disse...

Mz, eu 'utilizo' mais isto como um medicamento quando me acho o maior. A verdade é que todos nos achamos... e às vezes (poucas vezes, claro) não somos :)