26/07/2009

Ao Deus dará

Porque é que não gostamos?
Há pessoas que, digam o que disserem, nunca dizem o que devem dizer e que, façam o que fizerem, nunca fazem aquilo que deveriam fazer. Isto acontece simplesmente porque há pessoas que não são as pessoas que deviam ser. Não adianta tentar subverter esta inevitabilidade. Hoje somos culpados, amanhã seremos vítimas, na realidade ninguém tem a culpa - as coisas são como são - e ninguém pode fingir uma sede que não sente.

(João Freire)

Balla - Ao Deus dará




Para o desafio de Setembro Fábrica de Letras, subordinado ao tema "Fingimento".

23/07/2009

Badly Drawn Boy - Silent Sigh



(do álbum/soundtrack About a Boy de 2002)

19/07/2009

Não leia livros de auto-ajuda... e outros conselhos avulsos

Concentre-se, choque, dê nas vistas, destaque-se, endireite-se, estabeleça contacto visual, não diga sim muito rápido, não mostre tudo, invista tempo, seja original inteligente e engraçado, vista-se de acordo com a ocasião (bem, mas não demasiado), não faça dramas, lide com a adversidade, pense no que é importante, sorria.

(João Freire)

16/07/2009

Viagens

40 anos passados sobre o início daquela que seria a maior viagem do ser-humano*...

"Não esqueças que a viagem é como a roupa: a mais excitante é a interior."



* A alunagem, aquela viagem famosa do pequeno passo para o homem e do salto gigantesco para a humanidade
** Fotografia tirada na missão Apollo 8, pelo membro da tripulação Bill Anders


Para o tema "Uma longa viagem..." num desafio da "Fábrica de Letras"

Rage against the machine

13/07/2009

Chris Cornell e o concerto de Dave Matthews

O amor e a adoração contagiam facilmente. Alguém que teve sucesso (em qualquer área, desde a pessoal à profissional) dificilmente convive sem ele. Ninguém lida bem com a rejeição depois da aceitação generalizada. Alguns adaptam-se, conformando-se com a nova situação, racionalizando as suas virtudes, outros simplesmente matam-se na ânsia de que apenas fique a memória de um período áureo e outros tentam mudar, adaptar-se ao mundo que os rodeia, mantendo a todo o custo essa adoração, renunciando em última análise ao que são. A necessidade de nos sentirmos amados faz com que tentemos agradar ao maior número de pessoas, muitas vezes sem prestarmos atenção àquilo que nos agrada a nós.


Olhar para Chris Cornell e, sobretudo, ouvir a música que ele tem feito nos últimos tempos, é constatar a decadência de um homem que muitos consideravam um ídolo. Não será pelo aspecto de arrumador de carros que ele demonstra quando chega ao palco, não será certamente pela voz (em melhor estado do que quando veio com os Audioslave ao semi-demolido Alvalade), nem será muito pela banda assexuada de estilo emo que o acompanha, mas será muito pela música, encomendada ao mercenário dos easymade hits Timbaland, e pelas letras que a todo o custo tentam encaixar-se nelas em refrões orelhudos e simplistas que não lembrariam a bandas de garagem portuguesas - em caso de diferença, talvez o inglês destas pudesse ser mais cuidado. O produto talvez seja aliciante para muita gente, ao meu lado muita gente repetia ad nauseum "That bitch ain´t a part of me. I Said no, that bitch ain´t a part of me", mas a que custo? Conheço homens de 30 anos que se tivessem ouvido o que eu ouvi naquele concerto teriam vertido algumas das primeiras lágrimas da sua vida, homens (e mulheres) que aprenderam a conhecer a música, a língua inglesa e a literatura, o cinema, etc., moldando a sua identidade à volta de alguns valores supremos que, por exemplo, a banda de Chris Cornell, Soundgarden, divulgou amplamente.
O concerto não foi tão mau como seria de esperar, muito por culpa de incursões na música de Soundgarden (em vão esperei por Blow up the outside world), dos Temple of the Dog e até de Audioslave (que parece brilhante quando comparado com o último álbum de Chris, Scream), mas ainda assim, foi um sinal óbvio de um homem, que, só espero, esteja em luta com ele próprio, porque enquanto há luta há esperança.

Sobre Dave Matthews Band, com menção especial para Carter Beauford: Faltou Some Devil, Gravedigger, Angel e Save me* para ser genial! Assim, foi só brilhante.

... E a versão de All along the watchtower, com a inclusão da parte final de Stairway to Heaven? Perfeita!

*Gravedigger, Save me e Some devil são canções do álbum a solo de Dave Matthews, intitulado Some Devil, facto que tornava quase impossível a sua reprodução no concerto, mas, ainda assim, a esperança manteve-se.

Fotografias retiradas do Blitz
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(João Freire)

11/07/2009

Finley Quaye - It's Great When We're Together



(descobri-o há coisa de uns minutos... a modos que faz lembrar o Dave Mathews)

02/07/2009

O médico electricista

Sérgio sempre se sentira fascinado pela electricidade, que havia qualquer coisa de mágico na electricidade, afirmava ele tantas e tantas vezes com um certo e exagerado brilho nos olhos, imaginando o percurso da energia desde o momento em que era recolhida nas barragens até àquele instante em que se incandescia o filamento da pequena lâmpada do seu pequeno candeeiro na mesinha de cabeceira. Por isso dispensava o abajour, aquele terrível chapéu de abas que tapava a maravilha da ciência que era a luz eléctrica e que ele tanto gostava de observar. Esse fascínio com a electricidade, que tal como disse era congénito e endémico, desenvolveu-se ao ponto de se tornar numa relação de amizade. Ele tratava a electricidade por tu e brincava com ela como se de um colega de escola se tratasse.
(Só assim se explicava a confiança que as pessoas depositavam nele.)
As pessoas da aldeia conheciam-no desde menino, sabiam aliás da sua proximidade com a arte que praticava e por isso mesmo ninguém ficou espantado quando, após a simples associação de uma emergência aparentemente cardíaca à electricidade como solução teórica, os familiares do senhor Martins lhe apareceram a bater à porta.
(É nos casos de emergência, naqueles casos em que o engenho é aguçado, que se descobrem as soluções mais fantásticas.)
Na realidade, não foi bem bater à porta... a Senhora Cândida, que de cândida não tinha nada, habituada a resolver qualquer situação que se pusesse à frente dela com uma prontidão absurda, deslocou-se a casa de Sérgio, batendo à porta como se estivesse a tentar deitá-la ao chão e ordenou a Sérgio que fizesse alguma coisa. Será mais correcto assim.
Diziam que o senhor Martins tinha sentido uma dor no peito, seguida por uma dormência no braço que o fez cair, uma queda não igual a tantos tombos que o mesmo senhor havia dado ao longo dos tempos no café do Ernesto após devorar vinte ovos cozidos seguidos de uma caneca de litro de vinho caseiro - uma actividade habitual, para gáudio de muitos. Sérgio, não tão brusco como a dona Cândida, mas igualmente despachado, aproximou-se do corpo, observando a falta de respiração e do batimento cardíaco e pensou: “Electricidade!” De seguida, após uma breve inspecção às tomadas e a um candeeiro dourado que encimava uma alta copeira, arrancou em corrida até ao canto da sala, baixou o candeeiro, desligou a ficha da tomada, arrancou a ponta do fio que ligava ao candeeiro, ligou a ficha numa tomada mais próxima do corpo tombado e, segurando o fio descarnado, que despontava em dois, encostou levemente, primeiro o fio azul, depois o vermelho, à barriga do senhor Martins, pensando: “dois segundos devem chegar”. E bastaram, pois após uma convulsão, o senhor Martins recuperou os sentidos.
Foi sorte. Ninguém duvide da estupidez do gesto de Sérgio. Foi sorte e tudo poderia ter corrido de forma muito diferente (tudo poderia ter corrido muito mal), mas naquele momento correu bem e isso – até para o seguimento e interesse da narração - é que interessa, tornando-se num momento definidor da vida que se seguiria daí em diante. A palavra espalhou-se e não tardou muito até os seus serviços voltarem a ser requisitados, primeiro só em casos de dita emergência, depois já como alternativa à medicina tradicional de centros de saúde, filas, consultas, taxas, hospitais e atendimento demorado, ainda mais numa aldeia remota, uma aldeia distante de qualquer centro hospitalar ou meio de transporte que possibilitasse uma assistência rápida. Aliás, também por isso e por uma questão de comodidade de todos, a aldeia não era estranha a soluções inventivas de remedeio às deficiências dos serviços, ideias forçadas à institucionalização. O correio funcionava por recreação do senhor Rui da mercearia, que se deslocava todas as manhãs à cidade mais próxima, trazendo as novas de familiares amigos e cobradores da luz, água e bancos, tudo numa caixa no meio da hortaliça e das bananas, como quem diz os vegetais, as frutas, o pão e todos os víveres diários que venderia mais tarde no seu estabelecimento. Pensando bem, o senhor Rui também era a farmácia.
Mas em questões de saúde e de electricidade - motivo desta crónica - nomeadamente as que dizem respeito a intervenções terapêuticas mais arriscadas, não convém brincar e Sérgio, acolhendo a função social que lhe haviam atribuído, teve de pronto a noção clara da responsabilidade da sua tarefa, sentindo-se na obrigação de aprender. Fê-lo indubitavelmente, estudando em profundidade a anatomia a partir de um livro que tinha visto a primeira vez em casa da sua tia Irene (um livro que lhe tinha despertado a atenção pelas imagens de corpos em metades e com riscos azuis e vermelhos que percorriam as figura desde os dedos dos pés e das mãos à cabeça, mas em especial uma imagem - que eram duas - das partes íntimas do homem e da mulher, uma imagem com a sugestiva legendagem de aparelho reprodutor), tendo também aprofundado o seu conhecimento, por si só vasto, da electricidade em vários livros que o senhor Rui trazia da biblioteca da cidade, passando horas com ratos e gatos, aplicando e anotando num lisbonense de capa preta as diferentes cargas e os seus efeitos nos mais variados sistemas. Em pouco tempo, deixou de ser um mero amante da electricidade para ser um profissional da mesma... nunca deixando de amá-la! Curava todo o tipo de maleitas – podia aliás ser este o título do seu anúncio no jornal da cidade –, desde simples constipações com uma voltagem reduzida, mas continuada, a furúnculos e quistos com uma dose eléctrica superior, embora mais rápida e localizada, até àquelas doenças que ninguém usa nomear pelo temor que instauram nas pessoas, e não tardou muito a ter clientes para todos esses problemas médicos, clientes afáveis que o consultavam de forma confessional e que lhe pagavam de acordo com as suas possibilidades, e a verdade é que, para além de tudo, graças a uma simples mistura de agulhas de acupunctura, eléctrodos e panos húmidos, a electricidade lá ia funcionando.

(João Freire)