05/10/2010

Nunca se fala do cheiro da terra depois de uma trovoada

Não havia muita gente que conhecesse o mundo antes de ele ser de plástico. As árvores, o chão, os edifícios, como brinquedos, tudo de plástico. Talvez ainda existissem pessoas do tempo anterior à ‘cobertura’, antes da intoxicação total. Sabia-se agora que a contaminação dos solos e das águas, aliada ao degelo dos pólos conduzira àquela situação. Primeiro as inundações, de seguida o fim das correntes marítimas e finalmente uma nova Era Glaciar. Restara a fuga para o interior da terra e os 12 anos de recuperação, com fábricas termonucleares a bombear ar quente para a atmosfera e ar puro (numa mistura de 20% de oxigénio e 80% de nitrogénio) para dentro dos túneis, dando vida àqueles milhões de pessoas que tiveram a sorte de estar ao pé da rede de túneis de isolamento e climatização termonuclear de uma corporação que testava uma nova forma de armazenar energia. Por sorte, o restabelecimento das condições atmosféricas favoráveis à vida humana fora mais rápido do que o previsto, mas a contaminação dos solos inevitável. Os detritos radioactivos eram tantos que nenhum pedaço de terra na nova superfície terrestre era cultivável, sendo até tóxico ao contacto. Convém dizer que a área total terrestre diminuíra para um décimo dos valores dos finais do século XXI e que apenas mil milhões de pessoas haviam sobrevivido, povoando agora uma área da antiga Europa Central junto aos Alpes, estendendo-se a Oeste até ao território de Espanha e a Leste até ao território da Turquia e que se chamava - imagine-se - Nova Europa. Apenas o plástico subsistira, encontrando-se por todo o lado, boiando na água, em formas antigas de produtos variados e desnecessários, aparelhos de outros tempos que agora não serviam para nada mais do que a construção civil. Reconfiguradas as fábricas, que agora, restabelecidas as correntes, os pólos e o sistema climatérico em geral, não serviam nenhum propósito, procedeu-se nelas à reciclagem do plástico.
– Antes este prédio construía-se com ferro e não plástico – diziam os operários, como se contassem uma história inacreditável.
E tudo era plástico. Derretia-se o plástico, convertia-se o plástico nas formas desejadas pelos construtores, transformando-se sobretudo em blocos de construção por encaixe e colagem por calor e construía-se por cima da terra e do mar. A água, essa, era dessalinizada através da osmose reversa e a alimentação baseava-se no aproveitamento da carne humana morta, ultra-congelada, e na pesca, embora apenas algumas espécies fossem permitidas, devido à sua resistência à contaminação. A esperança média de vida baixara drasticamente, dai também a dificuldade de encontrar alguém que vivera no período anterior à cobertura, mas reza a lenda que numa dessas casas de plástico, uma homem muito velho que vivia com o seu filho, a nora e uma neta, lhes contava uma história do tempo anterior à cobertura, enumerando coisas tão fantásticas que faziam os olhos da criança brilhar de admiração e incredulidade. De repente começou a chover, nunca chovia naquele mundo de plástico, ficando toda a gente assustada com o barulho dos trovões. Restou ao velho, que sorria imenso, acalmar a sua família, recordando outros dias de chuva, antes da ‘cobertura’, enumerando coisas que o enchiam de saudades e às quais nunca dera o devido valor, coisas tão banais como a chuva a cair na face ou o cheiro da terra molhada. Sorriu uma última vez, caindo no chão, deixando um sorriso na face, perante a aflição do filho e da nora.
Um homem velho, que apesar de tudo tinha tido muita sorte, que fora casado anos sem conta, que tinha um filho extraordinário, uma nora que o estimava e uma neta tão bela como as estrelas, morria lembrando-se apenas, no meio de um suspiro final, do cheiro que a terra tinha quando chovia. A neta, que durante toda a sua vida ouvira dizer que o seu avô morrera ao contar uma história de um dia de trovoada e do cheiro da chuva, nunca se esqueceu dos poderes fatais desse cheiro. Desde aí que se ouve dizer que nunca se fala do cheiro da terra depois de uma trovoada.

(João Freire)

Para o tema "O cheiro da chuva" num desafio da "Fábrica de Letras".
Respondendo às dúvidas que surgiram ao ler outro texto sobre o Cheiro da chuva.

Radiohead - Fake Plastic Trees

Dave Matthews & Tim Reynolds - Gravedigger

32 comentários:

Por entre o luar disse...

Texto giro... gosto do cheiro da terra depois de uma trovoada :)

ipsis verbis disse...

Mais uma vez, um texto lindo. Psh...

mz disse...

O centro da terra afinal vai ser o nosso refúgio. O plástico vai continuar a ser fonte de rendimento na nova era glaciar, os homens vão comer outros que já foram e vai continuar a haver gente que não gosta de trovoada.Vamos continuar a ser humanos.:)


Gostei muito da tua ideia de contrução através da reciclagem do plástico, boa!
Nunca pensei estar a ler um texto assim... Apocalíctico.

Amaterasu, às vezes Aurora disse...

fez-me lembrar a serie de anime Ergos proxy...

gostei..

vou ver a serie de novo.. **

meldevespas disse...

Vamos viver em legos????


realmente esta menina podia ser a avo do meu conto...mas o meu foi ainda muito antes da cobertura ;D
Beijo

Poetic Girl disse...

Quase que senti aqui o cheiro da chuva, muito bom mesmo! bjs

Johnny disse...

Por entre o luar, giro? mais valia dizeres que não gostaste!

Ipsis, Obrigado, mas... vale sempre de pouco vindo de ti :)

MZ, gostei da síntese. Sim, sempre humanos, com muitos defeitos.

Amaterasu, não conheço (nem sou particularmente fã - shiu, não digas a ninguém!) mas se te fez lembrar uma coisa de que gostas, é bom sinal. Obrigadinho.

Foi nada, Mel. É esta. Tu escreveste sobre a neta desta senhora, quando a cobertura já não existia e a avó apenas a lembrava de um adágio do tempo da cobertura. O teu ainda se passou mais no futuro do que este, tu é que não sabes. E sim... legos!

Poetic Girl, muito obrigado. Só não corei, porque já sou 'a modos que pó corado'.

Por entre o luar disse...

LOl... deves estar a gizar so pode xD

Johnny disse...

Gizar? Isso em inglês tem um sentido muito perverso. Não estava a gizar, mas estava a gozar :)

Por entre o luar disse...

LOl... Acho bem que sim, se não para a próxima não levas elogio nenhum, porque para além de isso te tornar mais convencido ainda refilas xD

ipsis verbis disse...

Johnny: não sei porquê...

Johnny disse...

Ipsis, por causa do efeito... coiso.

Como aqueles que vão cantar aos concursos e não sabem cantar e não percebem como é que o júri não gosta quando toda a gente diz que canta bem. Quem? A família, principalmente a mãe, os irmãos, etc.

Tulipa Negra disse...

Não gosto deste futuro, embora talvez não seja tão irreal como isso. Mas gostei muito do texto.
Beijinhos

Johnny disse...

Que ninguém pense que eu gosto deste futuro, Tulipa!
Nem que sequer penso que vai ser assim... digamos que é uma hipótese, mas em forma de exagero... Obrigado pelo comentário.

Eduardina disse...

Que extraordinária imaginação!Muito bem concebido, embora um pouco aterrador.Gostei!

Johnny disse...

Eduardina, mesmo o que eu pretendia. Obrigado :)

El Matador disse...

Boa história de ficção científica, num futuro nada longíquo.

Moyle disse...

raramente se fala no cheiro da terra depois da chuva e arranjaste-lhe uma boa moldura :)

Johnny disse...

El Matador, vindo de alguém que as cria tão bem, até é um grande elogio.

Moyle, obrigadinho.

Louise disse...

Curiosamente o cheiro da terra molhada é daquelas coisas que me dão um prazer imenso.
E é simplesmente assustador constatar o quando este texto é credível... o quão real poderá vir a ser.

Um alerta a não ignorar sem dúvida alguma.
Muito bom.

Johnny disse...

Louise, obrigado. Quero crer que ainda vamos a tempo de mudar alguma coisa.

Catsone disse...

Enredo "Kubriquiano"!

Brown Eyes disse...

A inspiração está aí, no máximo. Excelente sem mais comentários. Beijinhos

Johnny disse...

Catsone, cá para mim, é mais Jerry Bruckheimmer, com explosões, efeitos especiais vários, etc :)

Mary, bem-haja :)

João Roque disse...

Os temas da Fábrica estão a tornar-se, na minha opinião, demasiado herméticos, para não dizer, a puxar ao intelectualóide.
No entanto, vão aparecendo textos, que com muita originalidade, lhes dão a volta e alcançam o objectivo.
Eu confesso que não sou capaz, ou então sou demasiado preguiçoso.
Por tudo isto, gostei e dou muito valor ao teu texto.

Johnny disse...

pinguim, imagino que seja complicado arranjar temas para todos os meses. Já tentei ajudar, enviando temas e é sempre difícil sugerir... apesar de alguns que eu lancei já terem sido desenvolvidos :)

A única sugestão que te posso fazer é que envies para lá sugestões porque garanto-te que eles vão eventualmente levar essas sugestões a votos.

quanto ao texto, obrigado.

blue disse...

Começas por ser realista, reforças com um dramatismo necessário, e depois, depois, levas-nos à ternura tão própria do ser humano. Se quando o mundo for de plástico, a ternura ainda persistir nos nossos corações, nada está perdido. Nada. Infelizmente estamos é a levar o planeta a um ponto que ficará além da recuperação.

Excelente selecção musical.

Johnny disse...

Blue, obrigado pela visita e pelos elogios. Concordo com o que disseste, embora pense que a terra tenha sempre capacidade de se regenerar... não sei é se nós (seres-humanos) teremos essa capacidade.

blue disse...

Nós (ou as gerações vindouras) teremos eventualmente de fazer o mesmo. Ou de aprender a fazê-lo.

Enquanto comentava, não pude deixar de me lembrar daquela que é considerada a obra máxima de uma das minhas escritoras preferidas, Pearl S. Buck - uma trilogia em que um dos personagens dá grande valor à terra: podem-nos roubar tudo, menos a terra, a terra fica sempre e a ela poderemos sempre voltar.

Johnny disse...

blue, eu falava de uma regeneração diferente da tua, penso eu. Queria eu dizer que enquanto a terra se regenera, provocando uma época glaciar para depois começar tudo outra vez, nós não temos essa hipótese, porque a humanidade só existe perante condições muito específicas - um pouco de oxigénio, um pouco de hidrogénio, um pouco disto e daquilo... o lodo primordial - e sem as quais deixamos pura e simplesmente de existir.

Quanto à escritora, acho que não é de bom tom vir para o meu blogue chamar-me de burro :) porque eu não conheço a senhora. Mas deve ser mais ou menos como a Scarlett, nesta cena

blue disse...

Johnny, que caraças, achas que eu vinha para aqui chamar-te de burro ou armar-me em intelectual? Referi a escritora porque realmente é uma das minhas preferidas, e não pude deixar de pensar no "Terra Bendita".
Espreita aqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pearl_S._Buck

Eu percebi a regeneração da qual falavas - e acredito que a continuar assim caminhamos a passos largos para um cataclismo global. Deduzo que poucos sobrem para contar a história e se esses poucos não aprenderem com os erros passados... não sei não.

Johnny disse...

Apesar de não ter encontrado a referência a essa obra em particular - penso que por motivos da tradução Luso-Brasileira -, acredito que seja uma boa escritora, até porque ganhou o prémio Nobel. se algum dia me passar pelas mãos, não deixo escapar :)

O segredo da humanidade está na formação dos seus representantes, nomeadamente nas escolas. Num reinício, teremos de apostar (porque eu serei um dos sobreviventes) mais na formação de cidadãos.